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Filhos, seremos sempre

Tive o privilégio de ter envelhecido ao lado da minha mãe. Pedir perdão, perdoar e ser perdoado é uma dádiva da longevidade. Por Alexandre Kalache

Filhos, seremos sempre

Confesso que não sabia que há um Dia do Filho. Imagino que seja o dia dos filhos e filhas. Afinal, filhos somos todos. Sempre. É a condição mais universal. Somos homens ou mulheres, ricos ou pobres, brancos ou negros, nascidos aqui ou ali. Mas filhos todos somos.

No entanto, celebrando a nova informação, vou tomá-la ao pé da letra. Hoje é meu dia. O Dia do Filho.

E que privilégio tive de ser filho ao longo de toda uma longa vida. Ser filho até os 75 anos. Quantos não podem usufruir a condição se não por muito pouco tempo. É, das dores, a que só é superada por pais que, por desventura, perdem um filho. 

Para mim, foi diferente. Pude, até bem pouco tempo atrás, dizer: “Mãe, eu estou aqui, ao seu lado. E eu te amo, sabe, mãe!?”. E vê-la, então centenária, esboçar um sorriso. Era nosso segredo, que eu lhe repetia sempre.

E seguia... “Posso te contar outro segredo, mãe?”. Seus olhos brilhavam na antecipação.  Eu chegava ao pé de seu ouvido e dizia: “Eu te adoro”.  

“E posso lhe fazer um pedido? Você me perdoa por tudo?” E ela, já tão fragilizada, mesmo já tendo sua Doença de Alzheimer bastante avançada, compreendia esse pedido. Passava a mão em minha calva cabeça num gesto de perdão absoluto. Esse ritual, eu o repeti por muitos anos. 

Momentos sublimes de pedir perdão, perdoar e ser perdoado – a dádiva maior que nos traz a longevidade.

Foram muitos os momentos mágicos de poder cuidar. Pode parecer ser sofrido assumir a paternidade de seus próprios progenitores. Eu, no entanto, encarei como um privilégio. Afinal, era uma profecia há muito anunciada.

Antigamente, as mães escreviam passagens no “livro do bebê”, uma espécie de blog minimalista. O primeiro sorriso, as primeiras visitas, o dentinho de leite, as pirraças, pequenas conquistas, travessuras, preferências. E, lá por volta dos meus cinco anos, a “profecia”: “Hoje estou tão feliz! O Alexandre disse que quando crescer ele vai ser médico – porque então os pais estarão velhinhos e vão precisar de alguém que deles cuidem”.

Claro que, sendo eu tão pequeno, não teria tido a capacidade de enunciar, sem uma “ajudinha” tal aspiração. Mas ficou gravado em pedra e cal. Desde então eu soube que tinha total liberdade de escolher o que eu quisesse... desde que fosse Medicina.

Mais tarde, quando eu tinha 15 anos, minha avó, recém-viúva, veio morar conosco. Logo depois minha mãe me chamou num canto e disse: “Meu filho, tenho uma notícia triste. Sua avó está com um câncer incurável. Vai precisar de muito cuidado. Você, que vai ser o médico da família, me ajuda a cuidar dela?”. E assim foi, ao longo de três anos. Não que eu tenha deixado de ser jovem, mas incorporei as rotinas do cuidado, antecipando a profecia, mal sabendo que aquelas seriam as experiências mais determinantes para, muitos anos depois, me especializar em envelhecimento

Ser filho é se sentir protegido. A segurança do amor incondicional. Do porto seguro. Quem nunca pediu a ajuda ou o colo dos pais quando a vida traz algum dissabor? Ser filho é isso. Poder ter a quem pedir e sentir a segurança de, no que deles dependesse, nos ajudariam. Contra tudo e todos.
 

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